Tenho
me preocupado, ultimamente – nada obstante o respeito que tenho pelos ministros
da Suprema Corte –, com certo ativismo judicial que leva a permitir que um
tribunal eleito por uma só pessoa substitua o Congresso Nacional, eleito por
130 milhões de brasileiros, sob a alegação de que, além de Poder Judiciário, é
também Poder Legislativo sempre que considerar que o Legislativo deixou de
cumprir as suas funções.
Uma
democracia em que a tripartição de poderes não se faça nítida, deixando de
caber ao Legislativo legislar, ao Executivo executar e ao Judiciário julgar,
corre o risco de se tornar ditadura se o Judiciário, dilacerando a
Constituição, se atribuir o poder de invadir as funções de outro. E, no caso do
Brasil, nitidamente o constituinte não deu ao Judiciário tal função, pois nas
“ações diretas de inconstitucionalidade por omissão” impõe ao Judiciário,
apesar de declarar a inércia constitucional do Congresso, notificar o
Legislativo para tomar as providências necessárias.
Veja-se
o caso da ADPF 54, em que o tribunal maior do país criou uma terceira hipótese
de impunidade ao aborto – o aborto eugênico, não constante do Código Penal
(art. 128), que só cuida do aborto terapêutico ou aborto sentimental (estupro).
Reza o parágrafo 2.º do artigo 103 da Constituição Federal que “declarada a
inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma
constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das
providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo
em trinta dias”.
Como
se vê, nem por omissão inconstitucional do Congresso poderia a Suprema
Corte legislar positivamente, devendo neste caso comunicar ao Congresso
Nacional que sua omissão seria inconstitucional; não aplicar nenhuma sanção, se
o Congresso não produzisse a norma; não definir qualquer prazo para que o faça;
e não produzir a norma não produzida pelo Parlamento.
Ora,
se nem nas omissões inconstitucionais do Parlamento pode a Suprema Corte
legislar, com muito maior razão não poderia legislar em hipótese em que o
Congresso não legisla, porque todas as dezenas de projetos de leis que cuidam
do aborto não conseguiram passar pelas comissões parlamentares encarregadas,
após audiências públicas; a grande maioria do povo brasileiro é contrária à
legalização do homicídio uterino; não pertence à cultura do povo brasileiro
provocar a morte de alguém pelo fato de não haver tratamento curativo para uma
determinada doença.
Ora,
se a Constituição Federal fala em independência e harmonia entre os poderes da
República (artigo 2.º), não poderia autorizar a Suprema Corte a revestir-se de
funções legislativas para produzir normas – em assunto no qual o Congresso
Nacional, apesar dos inúmeros projetos de lei, entende, em respeito à maioria
dos eleitores, que não deve produzi-las – autorizando o aborto por anencefalia
dos nascituros. Apesar de faltar competência normativa à Suprema Corte para a
criação de uma terceira hipótese de aborto, data maxima venia, foi por ele
criada, com ressalva aos brilhantes votos dos ministros Ricardo Lewandowsky e
Cesar Peluso.
O
Congresso Nacional tem o poder de anular esta invasão de sua competência em
legislar, por força do inciso XI do artigo 49, segundo o qual “é da competência
exclusiva do Congresso Nacional (...) zelar pela preservação de sua competência
legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes” (grifos meus),
algo que poderá ainda fazer, dependendo da vontade política dos congressistas
ou da pressão popular sobre o Parlamento.
Por
Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, é
fundador do IICS/Centro de Extensão Universitária.
Fonte:
Gazetadopovo.com.br
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